Por Josette Goulart | VALOR
De Bodó (RN), Cerro Corá (RN), Caetité (BA) e Igaporã (BA)
A
região do Seridó, no Rio Grande do Norte, tem um dos melhores ventos
para produção de energia eólica do país e as empresas já inflacionaram
os contratos de arrendamento de terrenos nos municípios que ficam na
Serra de Santana
Pouco a pouco, uma vida nova se esboça para centenas de famílias do
sertão nordestino. Castigados pelo clima e o árduo trabalho na roça que
os fizeram brutos, mas também fortes, esses homens e mulheres vivem
hoje da expectativa de que os ventos continuem soprando. Cabreiros pelo
inusitado, mas decididos em realizar seus sonhos de que os filhos
tenham uma vida diferente, esses sertanejos se tornaram, literalmente,
vendedores de vento.
Mais de 150 mil hectares de terras, de pequenos e grandes
proprietários, estão sendo ou já foram arrendadas no Nordeste afora por
investidores do setor de energia que vão gerar eletricidade a partir
dos ventos. Juntos, esses terrenos vão abrigar cerca de quatro mil
torres eólicas com capacidade conjunta para gerar 5.400 megawatts (MW),
toda essa energia já foi contratada pelo governo ou por grandes
consumidores. Cada uma das torres renderá entre R$ 5 mil e R$ 8 mil por
ano aos proprietários que estão arrendando pedaços de suas terras por
25 a 35 anos, prorrogáveis por igual período. Em alguns lugares, como
na região do Seridó, no Rio Grande do Norte, o rendimento será ainda
maior.
Muitos proprietários já planejam a reforma da casa, a compra de
geladeira nova e até de imóveis na cidade para garantir o futuro dos
filhos. Vender algo que se pode até sentir tocar a face, mas que não se
planta ou colhe, é uma nova realidade.
Lauro Assunção, aos 62 anos, sonha com a “festinha” que finalmente
fará para os amigos e família. Sim, vai ter festa em Bodó. Os planos
estão traçados. O casarão antigo, avariado pelos anos, vai receber tinta
nova. A carcaça do jipe abrigada na falsa garagem vai dar lugar à
paixão pela sanfona e aos convivas, dezenas deles, quiçá mais de cem com
tamanha família. A garagem será mais ao longe e um carro zero km
completará a nova aquarela. Uma das catorze cabeças de gado vai ser
engordada e sacrificada. Tudo isso virá com a renda do vento, que sopra
tão forte na Serra da Santana, onde fica Bodó, que faz crescer tortos
os cajueiros.
O contrato já foi assinado com a Iberdrola, mas ainda é referente ao
período de estudos da regularidade dos ventos. Em breve, Lauro espera
assinar o acordo pelas torres que ficarão em seus 64 hectares. É
bastante terra por aquelas paragens, mas isso não tornou seu Laurinho,
como é conhecido, rico. Ele espera mesmo é ganhar dinheiro com as
eólicas. Seu pai, com 13 filhos, tinha quase seis mil hectares. Mas era
só terra o que tinha. A riqueza não chegou junto e boa parte dos
terrenos acabou vendida para grandes proprietários, por preços
irrisórios se comparados com os de hoje. Esses novos proprietários terão
agora dezenas de torres em suas terras e uma renda milionária com as
eólicas da Iberdrola.
Mas isso pouco importa. Lauro faz as contas e acredita que poderá
ganhar até R$ 6 mil por mês com o arrendamento de suas terras e isso
está de bom tamanho. A nova renda será oito vezes maior do que ganhou no
ano passado de aposentadoria. Hoje, ele já recebe R$ 750 por mês da
Iberdrola, em uma fase preliminar do contrato, e pela primeira vez, pelo
que se lembra, ele e dona Francisca Lúcia, sua esposa, irão às cidades
vizinhas comprar roupas e presentes para a festa do Natal. O dinheiro
que ganham com a mandioca é muito pouco, apesar dos 80 mil quilos que
produz por safra de dois anos.
Não muito longe dali, na vizinha Cerro Corá, o cachorro Tufique
parece perceber os bons ventos. Nunca precisou se preocupar em ir à caça
dos preás para alimentar seus donos, como o famoso personagem Baleia
das Vidas Secas. Mas assim como a cachorra de Fabiano criada na ficção
por Graciliano Ramos, Tufique foi o fiel companheiro do dono nos
seguidos anos de safra difíceis em que seu Bento Pinto de Albuquerque
mal sabia se tinha tido lucro ou prejuízo.
Recentemente, Bento fez as contas sobre os gastos que teve para
plantar em um hectare de sua terra e percebeu que gasta muito e lucra
pouco, mesmo quando a safra está boa. Mas, na semana passada, recebeu
“alguns mil reais”, uma quantia que não revela. O dinheiro chegou porque
seu terreno foi escolhido pela empresa de projetos Rialma, de Goiás,
para que estudos de vento sejam feitos na região. Dona Francisca já dá
como certa a compra de fogão e geladeira novos. Bento, aos 55 anos,
todos vividos na roça, ainda está incrédulo quanto ao futuro do projeto e
se um contrato de longo prazo será mesmo fechado: “Num tenho leitura,
mas não sô abestalhado. Temo que vê como vai sê isso”.
Muitos dos sertanejos que estão vendendo vento não sabem ler ou
escrever e fecham os contratos com as empresas de energia confiando na
leitura de outras pessoas. O fio de bigode ainda vale no sertão. Algumas
prefeituras no Rio Grande do Norte dão auxílio a famílias e colocam
advogados à disposição da população para analisar os contratos e buscar
melhorar as condições. Mas na região seca do sul da Bahia que abriga
municípios como Caetité, Guanambi e Igaporã, a confiança na palavra tem
sido mais comum. É nessa parte do sul do Estado onde vão ficar parques
eólicos da Renova e Iberdrola. Só na primeira etapa de construção dos
parques da Renova serão colocadas 180 torres. Em todo o projeto da
empresa serão instalados 1.100 MW e as primeiras torres já estão sendo
colocadas.
Lauro Assunção, 62 anos, vai ter uma renda oito vezes maior e quer fazer festa na garagem, sem a carcaça do jipe
Os cataventos gigantes que estão mudando a paisagem do Nordeste ainda
fazem os donos de terras, principalmente os pequenos, se sentirem
confusos. Muitos temem que, com as torres, possam ser impedidos de
cultivar a terra. Mas os empreendedores garantem que, passada a fase da
construção, o espaço abaixo da torre pode ser usado normalmente. Os
contratos, entretanto, fazem algumas restrições sobre a profundidade do
plantio e a altura das plantações.
O que tem assustado os filhos de seu Guilhermino da Rocha, que têm
terras espalhadas pelo município de Guanambi, é não poder desistir do
negócio. O pai assinou o contrato com a Renova sem consultar a família,
que ficou aperreada com os valores da multa se desistirem do contrato.
Ninguém fala dessa cláusula do contrato. A muito custo, depois de se
perder nos caminhos da comunidade de Curral das Vacas em Guanambi, o
Valor
encontrou alguém disposto a mostrar o documento. Está lá: R$ 5 milhões é
o valor da multa, acrescido dos investimentos em equipamentos e
correção. “Não tem como desistir”, resume um dos filhos de seu
Guilhermino. É confuso também para os sertanejos da Bahia, a forma de
correção. Será pela inflação, mas todos acreditam que na medida em que o
salário mínimo subir, a renda vai crescer na mesma proporção.
Esse é o tipo de assunto que não causa preocupação em outros
proprietários de terra que são autoridades nas cidades. O prefeito de
Caetité, José Barreira, vai ter sete torres em suas terras e embolsar R$
38.500 por ano e não tem nenhum questionamento a fazer. Pelo
contrário, gaba-se do fato de que a arrecadação do Imposto sobre
Serviços (ISS) da cidade vai triplicar. Outra autoridade, o ex-deputado
estadual, Márcio de Oliveira, deu ainda mais sorte. Quinze torres vão
ficar em seu terreno, em Igaporã. Mas a sorte mesmo se deve à divisão
da herança da família. Ele aceitou ficar com o pior terreno, que
abrigava parte da serra local e portanto improdutiva, mas que é
propícia para gerar energia.
Outros sertanejos que vão ter torres em regiões serranas de seus
terrenos, não têm botado fé em que os contratos durem os 30 anos
prometidos. Clarindo Pereira da Silva é um desses céticos. Ele é um dos
maiores donos de terra de Caetité, junto com seus sete filhos. Vive uma
vida simples, toda ela feita da lida da roça. Mas, aos 80 anos, já viu
de tudo e questiona: “E se muda o governo? Já vi tanta firma grande
quebrar?” Mas no curto prazo, Clarindo vê a vida dos filhos melhorar
depois que assinou o contrato com a Renova, que tem entre seus
acionistas a Cemig, por meio da Light. O filho João Willi diz que a
venda da mandioca ou do leite trazia muita incerteza, já que os
compradores acabavam inadimplentes. “Agora, temos um cheque todo mês,
que sabemos que vai estar lá”.
Bento,
chefe da família Albuquerque, que vive em Cerro Corá, está contente
pelo dinheiro inesperado que entrou em caixa mas prefere não cultivar
ilusões
Na experiência de uma vida inteira na roça, Clarindo vaticina que os
ventos estão soprando mais fortemente nos últimos cinco anos. Coisa que
deixa Osvaldino Fernando de Souza esperançoso. Ele está na labuta
desde os sete anos de idade na cidade de Igaporã, esperançoso de que
seus filhos, hoje com dez, nove e sete anos, tenham uma vida mais
promissora. Aos 67 anos, Osvaldino foi pai tarde. Perdeu a primeira
esposa para o câncer depois de 30 anos de casado, sem nenhum filho.
O contrato de duas torres eólicas, que vão ficar no seu terreno, lhe
rende R$ 900 por mês e veio em uma “hora abençoada”, pois vai garantir o
futuro de seus filhos pequenos e a esposa 35 anos mais nova que ele.
“Os filho vão se criá. Já dá pra pagá o pão e tô alegre por isso”, diz
Osvaldino ao ver que sua terra, adquirida quando tinha apenas 14 anos de
idade, agora vai criar seus filhos sem a dureza da vida que teve.
“Oitenta conto. E a senhora num imagina a trabalhera que deu pá tê esse
dinheiro. Ralando mandioca e tocando o jegue pá moê a ração e dá pru
gado, que morria de fome (pela seca).”
O jegue não tem mais função. Foi substituído pela energia elétrica,
que só há dez anos chegou à casa de seu Osvaldino por meio do programa
Luz Para Todos. “Num dá prá ficá uma hora sem luz que a gente já acha
ruim e já fica sem ração pru gado”. A reclamação é porque ficou oito
horas do dia anterior, sem energia, por uma falha do sistema da Coelba,
distribuidora da Bahia. Não tem televisão na sala de seu Osvaldino. A
pequena casa de dois quartos, numa das sextas-feiras de novembro em que
recebeu o
Valor, estava mesmo era iluminada pelas
flores vermelhas de um flamboyant no quintal. Oito dias antes, a chuva
tinha chegado à cidade e feito florir toda a mata.
Centenas de quilômetros dali, quatro Estados acima no mapa, em Bodó,
um flamboyant de igual envergadura também iluminava a casa de seu
Laurinho e dona Francisca. “É o profeta do sertão”, contou dona
Francisca. Se as flores chegam é sinal de que a seca está distante e as
chuvas vão abençoar a terra. As águas têm demorado a chegar no sertão
este ano, mas os ventos fortes continuam soprando. As profecias do
flamboyant, Laurinho não consegue mais ver com nitidez. Está há 30 anos
perdendo a visão em função de uma doença congênita que já cegou três de
seus irmãos. Talvez ele não possa mais ver chegar a sua casa os
convidados para a festinha, quando ela finalmente acontecer. Mas isso
não abala esse homem do sertão, que só espera poder tocar a sanfona e
dar um aperto de mão nos amigos que chegarem.
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